segunda-feira, maio 26, 2025

Aviso: Populismo pode levar à tirania

 

As eleições em três países europeus no último fim-de-semana, 18 de Maio, vieram confirmar a caminhada ascendente da extrema- direita na Europa. Em Portugal, os avanços são evidentes com o partido Chega a posicionar-se para o segundo lugar no espectro político partidário e a demonstrar-se atractivo para antigos eleitores de partidos de esquerda, incluindo o partido socialista. Na Polónia e na Roménia são tão evidentes os ganhos conseguidos que é uma questão de tempo para os candidatos da extrema-direita obterem uma vitória nas disputas presidenciais. Vê-se o mesmo padrão em várias outras democracias que também enfrentam crises sociopolíticas de representação exacerbadas pela polarização da sociedade, o enfraquecimento dos partidos do centro político, as políticas identitárias e os problemas de imigração.

Nota-se que cada vez mais os votos dos eleitores parecem dirigir-se para forças políticas extremas, abandonando a preferência de classe ou ideológica de há muito estabelecida. Aparentemente, o fenómeno explica-se pela forma como o medo, o ressentimento e a incerteza em relação ao futuro tendem a prevalecer sobre o que seriam escolhas racionais ou expectáveis das pessoas com base no interesse sócio-económico, na aproximação política e no sentido de pertença a comunidades específicas. Quando é assim, há rompimento com os partidos tradicionais do centro, seja da esquerda, ou seja da direita.

O ganho maior com a convergência dos votos tem ido para a direita radical ou para a extrema-direita dando fôlego a forças políticas pré-existentes, ou promovendo novos partidos. No caso americano, trata-se de um partido tradicional, capturado por um candidato, e depois presidente, e devidamente saneado das suas elites partidárias anteriores, que se torna no grande atractor desse sentimento de desesperança, de ressentimento e até de exigência de compensação por males reais ou imaginados e mesmo vingança. Os primeiros cem dias do governo de Donald Trump têm demonstrado até que ponto se pode ir quando essas forças chegam ao poder.

Cabo Verde não está imune a essas dinâmicas que afectam outras democracias. Aqui também manifestam-se sinais de crise das democracias designadamente no fosso que parece existir entre as expectativas das pessoas e as condições reais de realização das suas aspirações ou o ritmo em que as oportunidades são criadas. Também são sinais a percepção de maior desigualdade social e o que aparentemente mostra ser a incapacidade da classe política, em particular dos partidos do arco de poder em apresentar projectos alternativos de políticas que podiam abrir um futuro mais promissor. Face a isso, seria só uma questão de tempo para, a exemplo do que vem passando em outras democracias, o descontentamento de vários sectores do eleitorado ser mobilizado por forças populistas.

A situação política especial em que o município da Praia se encontrou depois das eleições de 2020 criou o cenário ideal para isso. A instabilidade logo no início do mandato devido à disputa entre o presidente da câmara e os vereadores do seu partido destruiu a maioria na câmara municipal que o PAICV tinha ganho nas eleições. O funcionamento dos órgãos municipais passou a fazer-se a partir daí fora da normalidade legal e institucional já estabelecida por trinta anos do municipalismo democrático. Com um discurso de dupla vitimização por parte do governo e das “elites”, incluindo sectores do PAICV, o presidente da Câmara Municipal justificava a sua actuação no município.

A partir daí era possível cavar uma trajectória própria com distanciamento em relação ao partido e uma aura de impunidade em relação ao Estado. Com o poder e os recursos do município haveria uma base através da qual os entretanto identificados como “excluídos do sistema” podiam dar uma resposta assertiva às elites e à classe política. O motor do populismo era assim posto a funcionar. Diferentemente do que se passou em outras paragens, acontecia nas margens e com a cobertura de um partido que se identifica com a esquerda.

Vieram as eleições autárquicas de 2024 e a grande vitória já foi do presidente da câmara municipal e não do partido como na eleição anterior. Abriu-se a porta para a captura do partido e o reconhecimento do facto levou ao ainda líder a escusar um novo mandato. Mas como já aconteceu com outros partidos que se viram na mesma situação, as reacções não tardaram e vieram na forma de três candidaturas. Por experiência, porém, sabe-se que dificilmente se consegue impedir o processo.

De facto, com exemplos dos populistas a explorar a seu favor a condição de vítima das elites, dificilmente essas tentativas de dirigentes do partido terão sucesso. Particularmente quando não são tomadas posições políticas e se fica por questões que podem ser apresentadas como sendo de natureza procedimental e como tal “de secretaria”. É o caso das quotas que levou à interrupção do processo eleitoral e que para a candidatura visada serviu como mais uma demonstração da sua condição de vítima das elites.

A experiência recente das democracias com o populismo de direita ou de esquerda demonstra que não é fácil conter o seu ímpeto. Ao se apresentarem como campeões dos “excluídos do sistema”, por um lado, tendem a canalizar todo o descontentamento com o regime vigente político e a produzir uma mensagem política que se revela transversal atingindo vários segmentos da população. Partes significativas do eleitorado de partidos tradicionais tidos como fixos podem surpreender com a transferência de votos para os populistas, a exemplo do que se passou em Portugal.

Por outro lado, com a extrema polarização procuram criar uma realidade alternativa em que factos e dados institucionais são tidos como a verdade das elites e por isso efectivamente bloqueados ou descartados. Sem uma base comum de discussão, não fica espaço para o diálogo, para a política e para compromissos em relação ao futuro. A esfera pública reduz-se na cacofonia que é criada com a apresentação de soluções simples para situações complexas e na impossibilidade de as provar como viáveis ou inatingíveis por falta de debate.

Os vários casos de conquista do poder e das rédeas de governação por populistas demonstram a incompetência e muitas vezes o efeito destrutivo da acção governativa. Preocupante é que mesmo nesses casos de demonstrada incapacidade não é evidente que haja grande erosão da sua base de apoio. Razão mais do que suficiente para se evitar que forças populistas se tornem dominantes na sociedade. Para isso é fundamental insistir no cumprimento das normas e procedimentos democráticos, assegurar que as competências dos vários órgãos são exercidas e que os checks and balance do sistema funcionam de forma a manter a confiança nas instituições e garantir o espírito de solidariedade na comunidade.

Atacando o sistema democrático, alimentando o cinismo em relação a tudo, esvaziando a esperança no futuro, cria-se espaço para tirania futura. E para os que já se esqueceram o que significa tirania, os tiranos na actualidade relembram o que milénios atrás Platão escreveu no seu livro “A República”: “o tirano não tolera os críticos, nem sequer aqueles, precisamente, que o ajudaram a subir para o carro do Estado e que, entretanto, se mostraram os seus mais fiéis validos. A uns e outros ele elimina sucessivamente, sobretudo aqueles que o ajudaram a elevá-lo àquela posição e que têm poder para falar livremente, diante dele e uns com os outros, até que, por fim, não sobram a seu lado senão os medíocres, os ineptos e os aduladores”.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1225 de 21 de Maio de 2025.

segunda-feira, maio 19, 2025

Ninguém ganha com a transmissão directa das sessões do parlamento

 

Na semana passada a Rádio Pública comunicou à Assembleia Nacional que não continuaria a “transmitir as sessões parlamentares nos moldes habituais”. Aparentemente em unanimidade os deputados condenaram a decisão e houve quem questionasse se a RCV estaria a incumprir com as suas obrigações na prestação do serviço público. A direcção da RCV justificou a sua decisão com a necessidade de maior eficácia na cobertura e de optimização da utilização dos tempos da rádio no quadro de uma programação mais diversificada.

Os argumentos avançados posteriormente em vários canais ressuscitaram as questões de sempre quanto à censura e à independência editorial dos serviços públicos de comunicação social, não obstante dias antes os Repórteres sem Fronteiras terem em mais um relatório apontado a autocensura dos jornalistas como o maior problema dos médias em Cabo Verde. Esse facto devia ser um convite para se encarar o assunto numa outra perspectiva que provavelmente iria demonstrar que com o fim das transmissões dos trabalhos parlamentares há mais ganhos do que perdas para o parlamento, para os deputados, para a rádio, para o público e para a democracia.

O costume da rádio transmitir sessões de trabalho vem dos tempos da Assembleia Nacional Popular que, como uma instituição de um regime de partido único, era uma assembleia monopartidária. Fazia naturalmente parte do sistema de propaganda do próprio regime e em geral não permitia intermediação jornalística na radiofusão dos trabalhos dos deputados. Com o advento da democracia, o costume manteve-se, mas agora num ambiente pluripartidário marcado pelo exercício do contraditório e naturalmente pelo surgimento do discurso político crispado entre as partes.

Daí foi um passo para, perante qualquer tentativa da rádio de alterar o formato da transmissão dos trabalhos, se ouvir reclamações de censura ou de tratamento privilegiado. Esse impedimento manteve-se mesmo quando se tornou evidente que a excessiva exposição do parlamento com a radiofusão de todos os seus trabalhos não era benéfica para a imagem do parlamento, para a produtividade dos trabalhos parlamentares e para a própria democracia ainda nos seus primórdios e com uma cultura institucional incipiente.

Na generalidade das democracias representativas, o parlamento nos seus primeiros passos procurou rodear-se de um certo recato para que a função de representação fosse exercida efectivamente e não se reduzisse ao papel de transmissor de recados ou de porta voz de interesses particulares. Afinal, há proibição do mandato imperativo. Só há relativamente pouco tempo que os parlamentos se abriram para transmissões directas, mas através de canais próprios da rádio e da televisão e recentemente pela via do streaming.

É verdade que as sessões dos parlamentos democráticos são públicas e como tal têm que ser acessíveis para quem as queiram seguir ou procure ter o registo dos trabalhos nos diferentes formatos. Para garantir isso no parlamento cabo-verdiano, há vários anos que se vem investindo em canais audiovisuais próprios. Actualmente também pode-se seguir os trabalhos parlamentares via internet e redes sociais. Consequentemente, há muito que deixou de fazer sentido monopolizar a rádio pública durante horas a fio a transmitir as sessões em nome da publicidade dos trabalhos parlamentares. Nem é eficaz, considerando que em democracia é difícil manter audiências cativas porque os ouvintes têm escolha de rádios e de conteúdos.

A insistência em continuar as transmissões teve e vai continuar a ter consequências ao nível da percepção pública do parlamento, da forma como os deputados e os grupos parlamentares vão desempenhar o seu papel como legisladores e fiscalizadores do governo e da produtividade e eficácia que se pode esperar dos trabalhos parlamentares. Em relação à imagem da instituição é visível a degradação aos olhos do público, em parte por conta da tendência geral das democracias em avaliar negativamente o parlamento, mas numa parte significativa devido à crispação política que a transmissão em directo na rádio enfatiza e personaliza. Numa espécie de feedback positivo a reacção do publico a seguir em directo os trabalhos acaba por exacerbar os ânimos e a afectar negativamente a produtividade dos mesmos, tanto em matéria de tempo consumido, como do nível do discurso político e da possibilidade de se chegar a compromissos na efectivação do interesse geral.

Um outro efeito da excessiva exposição dos deputados via rádio é a opção por uma postura mais performativa e individual que, com prejuízo para os trabalhos, acaba por afectar a coesão, a estratégia e a capacidade negocial do grupo parlamentar no diálogo com os adversários políticos. Ao longo do tempo tende a multiplicar-se o número de deputados a intervir sem uma preocupação de grupo, mas com o objectivo de atingir o eleitorado do seu círculo eleitoral como se as eleições fossem uninominais e não por listas plurinominais propostas pelos partidos. Daí a insistência em assoberbar o parlamento e em confrontar adversários e o governo com questões próprias das câmaras municipais.

Só que isso prejudica a democracia. Ao pôr em causa princípios como lealdade institucional que, no caso, tem na sua base o respeito pelas competências dos órgãos eleitos e a autonomia do poder local, pode-se estar a dar espaço e legitimidade para o surgimento de contrapoderes em vez de se ter um sistema político equilibrado com os seus checks and balances. Há que conter a tentação de usar tácticas políticas, a lembrar passados revolucionários, de criação de poderes paralelos para esvaziar os legítimos, diminuir a transparência no exercício no poder e retirar a possibilidade de diálogo que leva à paz social. Candidatos ao papel de contrapoder, posicionando-se acima do sistema democrático, parece que não faltam.

O imbróglio com a RCV suscita uma outra questão que tem a ver com o posicionamento hegemónico da rádio pública no espaço mediático do país. Aliás, é devido a essa posição que é atacada por uns e outros e que vê uma sua decisão unanimemente contestada pelos deputados. Mas é uma situação anómala que, se até agora não foi alterada, não parece que vá acontecer num futuro próximo, independentemente de que partido governa. Por essa razão, uma especial responsabilidade devia recair sobre a direcção da rádio e os jornalistas no sentido de com isenção assegurar a expressão e o confronto das ideias das diversas correntes de opinião.

Podia-se já com a nova cobertura do parlamento investir numa equipa jornalística conhecedora dos procedimentos, da história e das matérias em discussão para fazer a intermediação certa com o público e elevar a outro nível a informação sobre os trabalhos no plenário da Assembleia Nacional No outro pomo de discórdia pública, que é o comentário na rádio e na televisão, devia-se investir na contratação de comentadores capazes de exprimir opiniões diversas que garantissem o pluralismo de ideias e evitasse a nota monocórdia em questões importantes que várias vezes tende a prevalecer. Há um problema com os recursos, mas sabe-se que são sempre escassos e por isso deve-se estabelecer prioridades. Para órgãos que tem obrigação de mostrar pluralismo interno, o investimento em assegurar isso a todo o momento devia ser prioritário.

Da minicrise que resultou da decisão em alterar a cobertura do parlamento pela rádio pública pode ter surgido a oportunidade de, por um lado, levar a Assembleia Nacional a evoluir da condição de um “parlamento de plenário” para um parlamento onde o grosso do trabalho é feito nas comissões especializadas, como acontece em todos os parlamentos maduros. Para a RTC pode ser o momento para alocar recursos de forma a cumprir com a sua missão constitucionalmente estabelecida de contribuir para o dialogo plural, informativo e esclarecedor com foco no interesse público. Se assim for o país saíra a ganhar desta disputa.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1224 de 14 de Maio de 2025.

segunda-feira, maio 12, 2025

Libertar-se da autocensura

 

Pelo 3 de Maio, Dia da Liberdade de Imprensa, a ONG Repórteres Sem Fronteiras publica o ranking dos países com base na avaliação das condições para o exercício livre dos órgãos de comunicação social e da actividade jornalística. Cabo Verde ficou na posição 30 do ranking, uma melhoria de 11 lugares em relação ao ano anterior. Visto pelos indicadores, percebe-se que o que negativamente pesa mais é a dependência económica. Destaca-se o facto de 70% dos jornalistas estarem nos órgãos públicos que sobrevivem à custa de subsídios do Estado, usufruindo de melhores salários e estabilidade, e o facto de os média privados enfrentarem um crescimento limitado por um mercado publicitário restrito.

Quanto aos outros indicadores, em particular o do quadro jurídico para o exercício das funções e o da segurança para os jornalistas, constatam-se melhorias significativas. O que parece que não muda após sucessivos relatórios dos RSF é a questão da autocensura que, segundo o documento, “tornou-se um hábito no país”. Como explicação atribui-se Cabo Verde uma “cultura de sigilo” e acusa-se o Estado de “restringir o acesso a informações de interesse público”. Para a compreensão do fenómeno da autocensura talvez seja importante notar que não se limita aos jornalistas.

É mais amplo como recentemente se constatou num programa radiofónico da RCV em que se procurou justificar a dificuldade em conseguir comentário económico com a autocensura dos economistas. Provavelmente existirá em vários outros sectores indicando não tanto uma cultura de sigilo, mas uma atitude de conformismo com narrativas bem enraizadas e de crença em verdades convenientes. Para isso contribuíra certamente o excessivo peso dos órgãos públicos de comunicação social e a fragilidade dos média privados. Com o pluralismo na esfera pública limitado por essas distorções, dificilmente se consegue desenvolver o pensamento crítico, a coragem para apresentar ideias novas e a ousadia de ser diferente.

Não era para ser assim. A Constituição obriga a que haja um serviço público da rádio e da televisão, mas estipula que o Estado deve garantir a isenção dos órgãos e que deve ser assegurado a expressão e o confronto de ideias das diferentes correntes de opinião. Ou seja, que é fundamental existir pluralidade interna nesses órgãos e que para isso há que garantir a liberdade dos jornalistas perante o poder político e o económico. Mesmo a nomeação e a demissão dos directores de Informação e de Programação devem ser precedidas de parecer favorável da autoridade reguladora (ARC) eleita por dois terços dos deputados da Nação.

A persistência da autocensura num tal quadro deriva provavelmente dos problemas de origem dos órgãos públicos de radiodifusão e da cultura institucional subsequente. No processo de independência foram eliminadas as rádios privadas e de seguida transformadas em órgãos de propaganda política. Ao longo dos primeiros quinzes anos tudo se fez para, nas palavras de um alto dirigente, não se ter “especialistas de informação” (jornalistas), mas sim “militantes que coordenam o trabalho de levar a cada cidadão o conhecimento” do progresso do país.

Com o advento da democracia, não se mudou realmente para uma cultura de isenção e de dar expressão ao pluralismo de ideias. E a verdade é que, sem assunção completa desses valores e num quadro democrático de normal tensão entre o governo e a imprensa, a independência em relação aos poderes político e económico garantida aos jornalistas deixava espaço para simpatias políticas em relação a um partido ou para vitimização perante outro, sob a capa de autocensura. As malhas ideológicas em tensão com os novos valores e princípios constitucionais da Segunda República, que continuaram a entremear as instituições, contribuíram para que o mesmo fenómeno de simpatia ou autocensura, conforme o caso, se propagasse para outros sectores, em particular os que lidavam com o conhecimento, a informação e a cultura.

A exagerada desproporcionalidade de cobertura dos média públicos em relação aos privados criada pelas tomadas das rádios há cinquenta anos nunca foi alterada significativamente. Parece que todos os governos na vigência do regime democrático se sentiram confortáveis com a situação ou se viram impotentes para a alterar, apesar de todos os partidos a criticarem quando na oposição. Em consequência, a expressão e o confronto de ideias no país não acontecem ao nível que se seria de desejar em democracia.

No público há os constrangimentos, já referidos, no pluralismo interno exigido aos órgãos. Nos média privados, a autocensura pode ser uma forma de lidar com um mercado publicitário tornado exíguo pela posição hegemónica do Estado. O problema é que, quando todos se alinham para sobreviver, diminui-se o pluralismo externo na base de órgãos editorialmente diversos que devia produzir o confronto de ideias.

Os sectores da cultura e da educação e as universidades que podiam compensar as deficiências na dinamização das ideias têm-nas provavelmente aumentadas. Sob a influencia de políticas identitárias e de correntes de pensamento polarizadoras da sociedade que alimentam o ressentimento e a vitimização não se cria espaço para o pluralismo e o debate de ideias. Pelo contrário, encadeiam-se incentivos como bolsas para estudo e investigação, edição de obras, facilidades de carreira e de contratação para criar activistas e passar ideias iliberais.

Nos Estados Unidos a percepção de que se está a fechar ao confronto de ideias com abordagens similares já serviu de pretexto para uma forte reacção do governo Trump contra certas universidades. O mesmo dá sinais de acontecer noutras partes do mundo. Em Cabo Verde ainda se fica pelo conformismo e pelo reforço da autocensura.

Entretanto, as consequências negativas vão-se acumulando. Um exemplo disso é o facto de no dia da língua portuguesa, que é a língua oficial, a língua escrita do país e da literatura cabo-verdiana e a língua do ensino, sem reacções de protesto não se dar trégua ao confronto do crioulo com o português e com a problemática da sua oficialização. Parece que não importa os estragos visíveis que essa atitude provoca diminuindo a disponibilidade das crianças e jovens em aprender a escrever, em ler livros e manuais escolares e em ser cidadãos plenos, porque capazes de se comunicarem plenamente na língua oficial e potenciarem todo o conhecimento acumulado do país. Sem preocupação com o impacto real do activismo de motivação ideológica na vida das pessoas parece que o pretendido é análogo ao que se consegue do bullying: conformar atitudes, criar falta de confiança e autocensurar-se.

Recentemente viu-se gente que se autoglorifica como africano ou como donos da independência a chamar os cabo-verdianos de racistas e a tomar por saudosistas quem celebrar o 25 de Abril sem a devida autorização. Por aí vê-se que o bullying no presente parece um instrumento de preferência para quem, como diz George Orwell, tudo faz para controlar o passado para poder controlar o futuro. Há, porém, que quebrar essa relação de vassalagem para que os relatórios dos RSF deixem de apontar a autocensura como um hábito e se acabe com a cultura de verdades convenientes em Cabo Verde. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1223 de 07 de Maio de 2025.

segunda-feira, maio 05, 2025

Cabo Verde, a história imposta

 A propósito da rejeição de entrada de alguns estrangeiros oriundos da Nigéria pelos Serviços de Imigração e Fronteiras assistiu-se nas últimas semanas a mais uma avalanche de acusações rotulando Cabo Verde de país racista e os cabo-verdianos de racistas. Intervenções de titulares de órgãos de soberania e posicionamentos de partidos políticos serviram de pivot para as sucessivas vagas de ataque que se verificaram a partir de órgãos de comunicação social e das redes sociais. Aconteceu antes e irá acontecer no futuro ao mínimo pretexto, porque faz parte do cardápio dos que se servem de políticas identitárias e das paixões e ressentimentos por elas suscitadas para obter ganhos políticos.

É curioso que ninguém acusa de racista outros países da CEDEAO com um registo de rejeição de entradas superior ao de Cabo Verde ou com uma história de expulsão de nacionais da comunidade aos milhares e mesmo milhões, caso da Nigéria, da Costa do Marfim ou do Senegal. Normalmente o rótulo de racista vai para os países europeus e o Ocidente, em geral em relação aos quais reivindicações de mais ajuda e de reparações surtem efeito. Árabes e asiáticos parece que estão excluídos deste jogo.

Aplicá-lo a Cabo Verde, que não tem o passado colonial e de segregação racial desses países que poderiam justificar a existência ainda de atitudes racistas e manifestações de racismo estrutural, não faz qualquer sentido. Só se compreende se a realidade humana de Cabo Verde que, de uma determinada perspectiva, podia chamar-se de pós-racial é um elemento de perturbação para certas ideologias fixadas na raça e na luta racial. E para devolver o país a uma normalidade desejada é preciso desconstrui-la e racializá-la.

As consequências do extremar de posições em matérias de políticas identitárias em todo o mundo são hoje visíveis para todos. De facto, a afirmação de identidades distintas, em disputa permanente e incapazes de chegar a compromissos, tem contribuído para a polarização das sociedades, para o aumento na hostilidade aos imigrantes e para a ascensão de políticos e políticas radicais. Nos Estados Unidos da América foi um dos principais factores por trás da eleição de Donald Trump. Na Europa, o reforço em parte da posição da extrema-direita alimenta-se desse radicalismo que põe em causa valores universais. Daí a guinada brusca para o iliberalismo e a compressão dos direitos fundamentais, o enfraquecimento do Estado de Direito e a contestação da independência dos tribunais e o surgimento de oligarquias económico-financeiras próximas do poder político.

Não se deve esperar diferente em Cabo Verde se se continuar a prática de, sempre que a oportunidade se oferece, se recorrer à táctica de acusar o país e o povo de racista, de forçar uma escolha entre Europa e África, e de esgravatar o passado à procura de cumplicidades com o poder colonial. Corre-se o risco de enfraquecer a consciência da nação, de quebrar a unidade do país com ressentimentos forjados e de minar a democracia liberal com a perda de confiança de que os órgãos de soberania são representativos de todos. Em causa pode ficar o que distingue e constitui vantagem para o país que é o de ser uno, diverso, mas sem tensões raciais e com uma democracia estável.

Infelizmente, a tentação de se prosseguir com políticas identitárias potencialmente divisivas sem preocupação com as consequências é quase incontornável. Na sequência da revolução de 25 de Abril de 1974 e no processo de retirada das colónias, as ilhas de Cabo Verde foram praticamente entregues pelas autoridades portuguesas ao Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que da Guiné, a cerca de 1000 quilómetros de distância, conduzia uma guerra de guerrilha e clamava pela independência do arquipélago. Aconteceu algo similar com as restantes colónias, mesmo com São Tomé e Príncipe em relação à qual não havia movimento armado a exigir a independência. Identificando-se como partido africano e promotor de uma unidade política com a Guiné-Bissau, o PAIGC logo no texto da proclamação da independência determinou “um destino africano” para Cabo Verde, sem que houvesse consulta popular num ambiente livre e plural. Aliás, assim como nas outras colónias e em nome do princípio de NÃO AO REFERENDO, não houve exercício do direito à autodeterminação.

Para um povo, que por mais de um século e em todas as ilhas já se reconhecia como cabo-verdiano, mesmo dentro do império português, com a sua língua, cultura, música e literatura, a imposição de uma identidade genérica (a África tem mais de 900 etnias e línguas) no quadro de uma ideologia pan-africanista em detrimento da sua não podia deixar de ser traumatizante. Também teria que provocar divisão no país entre, por um lado, os que aderiram ao novo regime, que logo se revelou totalitário e, portanto, agressivo e intolerante, e os outros. A tentação de considerar os resistentes à sua ideologia como saudosistas, europeístas ou luso-tropicalistas e pró-claridosos persiste até hoje, mesmo depois da “unidade Guiné e Cabo Verde” ter-se revelado um embuste para legitimar a implantação durante quinze anos de uma ditadura dos “melhores filhos do povo”.

Para criar fundamentação teórica para o destino africano recorreram aos escritos de António Carreira que, segundo o depoimento de Carlos Reis, ministro da Educação entre 1975/1980, para o livro de João Lopes Filho sobre esse autor, “a obra de António Carreira é aquela que mais fez para a produção e sistematização de elementos teóricos para uma possível unidade entre Guiné e Cabo Verde”. O historiador António Correia e Silva no mesmo livro diz que: “Em vez da história da cultura, das ideias e das atitudes (…) predomina em Carreira a história económica, mais concretamente a do tráfico de escravos”. Compreende-se assim por que, de acordo com Correia e Silva, a sua obra é “talvez a mais marcante para a conformação da moderna historiografia cabo-verdiana”. Ao fazer da “escravatura” e do “escravo” as chaves para se decifrar a história de cinco séculos de Cabo Verde, ficavam justificados a imposição do destino africano e o papel dos “libertadores”.

A postura cultivada de libertadores, porém, cede rapidamente para a de conquistadores, sempre que por qualquer razão acham que o país não lhes presta suficiente vassalagem. Aconteceu há poucos dias na sequência do início das comemorações dos 50 anos de independência. Acham que a celebração deve ser sobre o processo de independência e os seus dirigentes, processo esse que, como se sabe, impediu aos cabo-verdianos o exercício do direito à autodeterminação e impôs ao país uma ditadura de quinze anos na qual foram os principais protagonistas. Mas é evidente que em democracia, quando se celebra o dia do país, são os princípios e valores em que a comunidade nacional se revê que são fortalecidos, em particular o facto de a independência significar antes de tudo autodeterminação para escolher livremente os governantes, fazer as leis a serem acatadas por todos e decidir o rumo do país em eleições periódicas.

A comemoração da independência com esse sentido favorece a união e a solidariedade e renova a confiança no futuro. Mas se é luta política permanente que se pretende para conquistar o poder, vão continuar aí as questões identitárias, vai-se fustigar o país com acusações de racismo e até invocar a figura de Amílcar Cabral, sem preocupação com as consequências. A assunção de responsabilidade nunca foi um traço forte de quem procura o poder a todo o custo.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1222 de 30 de Abril de 2025.

sexta-feira, abril 25, 2025

Deixar-se contagiar pelo bem

 As previsões do crescimento económico mundial para 2025 contidas no World Economic Outlook do FMI publicadas no dia 22 de Abril, vieram confirmar a quebra na dinâmica da economia global, que se fazia sentir em todo o mundo, especialmente depois da imposição pelos Estados Unidos das chamadas tarifas recíprocas. As incertezas criadas ao longo dos primeiros cem dias do governo de Donald Trump já provocaram baixas pronunciadas nas principais bolsas de valores, já aumentaram as expectativas de inflação, e com o dólar a cair e as obrigações do Tesouro Americano com menos procura é a própria confiança na América que já foi abalada. Segundo o FMI, a perda da dinâmica deverá prolongar-se para 2026 mesmo que não venha a verificar-se a esperada guerra comercial entre os EUA e a China.

Para enfrentar a actual situação crítica, o FMI recomenda que os estados entre si promovam um ambiente estável e previsível para o comércio internacional e facilitem a cooperação internacional. Hoje ninguém tem dúvidas que o mundo mudou e que as regras que durante décadas moldaram as relações internacionais já não serão iguais às da nova fase, mesmo na eventualidade de diminuírem as tensões geopolíticas actuais. Vão-se criar novas cadeias de abastecimento e de produção, a preocupação com a resiliência vai aumentar em detrimento da eficiência, particularmente em sectores estratégicos, e globalmente o peso das tarifas será maior com custos para os consumidores e produtores e com uma inflação global possivelmente mais alta.

Um outro factor de tensão é a diminuição da cooperação internacional que se verificará com o desengajamento dos Estados Unidos do seu papel fulcral nas organizações multilaterais e de ajuda internacional. A baixa na capacidade de resposta global a situações de catástrofes naturais, fomes, guerras e movimentação de refugiados além de traduzir-se em mais sofrimento humano poderá contribuir para conflitos de vária ordem entre estados enquanto procuram defender-se de migrações forçadas, epidemias e da violência transnacional que as pode acompanhar. Um outro risco a enfrentar tem a ver com a diminuta capacidade de resposta a problemas globais como os das alterações climáticas que a falta de cooperação internacional vai propiciar.

Em África tudo indica que as consequências do desengajamento dos principais financiadores poderão ser dramáticas. As pretensões do governo de Donald Trump, vindas a público nos últimos dias no jornal New York Times, de fechar várias embaixadas e consulados em África a par com o término da ajuda via USAID em vários sectores, designadamente na disponibilização de medicamentos, deixam antever situações complicadas. O continente já sofre com casos terríveis de subdesenvolvimento, população jovem e desempregada, movimentação da população por causa de guerras e crescente instabilidade política que tem levado a golpes militares. O aumento da precariedade certamente que irá elevar a pressão sobre vários países do continente e incentivar migrações para Europa, Médio Oriente e outros territórios próximos com todas as consequências, entre as quais a própria estabilidade política e social dos países receptores.

Não é displicente que o FMI no World Economic Outlok também aconselhe que ao nível interno dos respectivos países se procure resolver as falhas ou insuficiências das políticas públicas e diminuir os desequilíbrios estruturais. Diz o relatório que isso é essencial para garantir tanto a estabilidade interna como a externa quando a situação internacional é mais desafiante, uma ordem está a desaparecer e não se prevê o que vai emergir em sua substituição e não se sabe com quem contar quando as alianças, amizades e cumplicidades estão a ser refeitas. Realmente, a conjuntura actual exige um outro foco sobre os problemas internos dos países numa perspectiva de procurar pôr coisas em ordem e fazer melhor uso dos recursos existentes, ganhar resiliência para enfrentar choques naturais e choques externos e reforçar a confiança para se ter mais união e solidariedade.

A par disso, como recomenda o FMI, há que estimular o crescimento quando é perceptível que vários factores, nomeadamente demográficos, baixa natalidade e envelhecimento da população, desindustrialização e inovações tecnológicas poderão estar a contribuir para crescimento baixo e estagnação, a prazo, da economia. Daí a importância de se aumentar a produtividade com uma aposta colectiva no desenvolvimento do capital humano, mais educação e formação virada para a empregabilidade, políticas de saúde ajustadas para um envelhecimento saudável e cuidado especial com uma adequada integração da população imigrante.

Em Cabo Verde, a fragilidade do país e as suas vulnerabilidades exigem que se preste a maior atenção ao momento crítico que se vive actualmente. Não se pode pretender viver num outro mundo e a fazer a mesma política como se fosse um jogo de soma zero, a insistir nas mesmas políticas públicas sem uma preocupação central com o o real impacto na vida das pessoas e na economia e a prometer distribuir sem primeiro promover a criação de riqueza. Nem se pode querer a cooperação de todos sem nivelar o jogo com as mesmas regras, sem mostrar eficiência no uso de recursos públicos e sem clarificar que, para a realização do interesse publico e do país, interesses particulares e resquícios ideológicos não podem ser impedimento.

O desafio que a fase actual nas relações internacionais de passagem de uma ordem para outra representa para um país com as características de Cabo Verde devia ser mobilizador de um novo espírito. Em Singapura, no dia 8 de Abril, o primeiro-ministro, depois de caracterizar o momento no mundo como incerto, inquietante e cada vez mais instável, avançou com um conjunto de medidas para mitigar o impacto das mudanças e preparar a ilha, independente há sessenta anos e já com rendimento per capita de 65 mil dólares, para o ambiente económico emergente. Prosseguiu o seu discurso apelando a que o país permanecesse “unido, que juntasse os seus recursos, a sua resiliência e a sua determinação para continuar a ser um farol de estabilidade, propósito e esperança”. Em Cabo Verde não devia ser menos o apelo a ser feito.

Neste momento de tristeza geral pela morte do Papa Francisco, que coincide com o fim de uma era causado por um mal que parece contagioso, talvez uma forma de o relembrar e de nele se inspirar para enfrentar as dificuldades à frente, é ter sempre presente que, como ele disse, “O bem também é. Deixemo-nos contagiar pelo bem e contagiemos o bem!” Para isso é fundamental restaurar a confiança e promover a solidariedade.  

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1221 de 23 de Abril de 2025.

segunda-feira, abril 14, 2025

Crescimento acima de 7% deve ser incentivo para fazer melhor

 

Numa conjuntura em que é rara uma boa surpresa, a notícia na semana passada do crescimento do PIB em Cabo Verde em 7,3% acima dos há muito almejados 7% foi bem-vinda. Já não se trata de taxas do PIB que resultam da recuperação económica em 2021 (7%) e em 2022 (15,8%), depois da violenta recessão que tinha levado à contracção da economia de 20,8% em 2020. É uma taxa do PIB que, depois de um suposto regresso à normalidade de um crescimento próximo do potencial, em 2023, (5,4%) e em linha com as projecções do FMI e de outras instituições para os próximos anos, deixa perceber a existência de alguma capacidade de crescer mais, se submetido ao estímulo certo, no caso, ao aumento do número de turistas para cerca de um milhão e duzentos mil.

A satisfação face aos dados publicados não deve obscurecer o facto de que o turismo continua a ser o principal motor do crescimento da economia e que por essa razão entre outras urge diversificar a economia para diminuir a vulnerabilidade do país em caso de choques externos, particularmente os que podem afectar o fluxo turístico. Em 2020, a paralisação das viagens internacionais devido à pandemia da covid-19 precipitou Cabo Verde numa das maiores recessões registadas a nível mundial. O grau de vulnerabilidade então revelado deverá sempre servir de lembrete para a urgência em se tornar a economia nacional mais resiliente.

Ninguém garante que na próxima crise haverá o mesmo nível de ajuda internacional que nos anos da pandemia contribuiu para mitigar os efeitos dos empregos perdidos, das receitas do Estado não cobradas e da falta de meios para lutar contra a pobreza crescente. Aliás, com a fragilização das organizações multilaterais devido ao processo de mudanças em curso no mundo não é expectável que continue a haver meios, vontade e coordenação na mesma dimensão dos anos atrás. Nem sequer persistirá o espírito de cooperação para enfrentar ameaças globais, que acompanhou o processo de globalização, no meio da guerra comercial ora desencadeada à volta das tarifas alfandegárias. Razões mais do que suficientes para não se quedar pelo regozijo actual e pela auto congratulação.

Também é preciso ter em atenção que focar na diversificação da economia significa trabalhar de forma articulada, encadeada e dirigida no sentido da consolidação de um empresariado nacional e, por essa via, tornar mais abrangente o efeito de arrastamento da procura externa na economia, com a criação de empregos qualificados, a formalização da economia e melhor distribuição de riqueza no país. Isso só será possível se houver vontade geral em identificar os obstáculos que têm dificultado as reformas indispensáveis e ultrapassá-los, em debater construtivamente as diferentes vias para se chegar a soluções viáveis e sustentáveis e compreender a urgência de se adoptar uma nova atitude em relação aos problemas do país.

Há que, por exemplo, debater que modelo de agricultura se quer para o país e não ficar só pelo esforço de mobilizar água. No mesmo sentido, que futuro se pode descortinar para a pecuária que vá além dos pequenos criadores e do espectáculo de animais a passear pelas lixeiras. A pesca precisa dar um salto e para isso é preciso equacionar como aumentar a captura não só para explorar industrialmente os recursos marinhos como também para aumentar os rendimentos dos pescadores e assegurar um futuro para as conserveiras e seus trabalhadores. Também há que direccionar o esforço de digitalização para tornar mais acessíveis, rápidos e de menor custo os serviços prestados aos utentes, da mesma forma que uma preocupação fundamental em fazer cair os preços da água e de energia deve orientar todo o investimento nas energias renováveis e na promoção da eficiência energética.

Felizmente que para a criação e a operacionalização da vontade geral necessária para avançar com mudanças de fundo leva vantagem quem já tenha arreigado um sentido de pertença à comunidade nacional e de partilha de um passado e de um futuro comum. Cabo Verde pode ter a desvantagem de ser um país arquipélago com nove ilhas, com pequena população e relativamente isolado, a cerca de 600 quilómetros do continente, mas destaca-se pelo facto do seu povo manifestar há séculos uma consciência de nação que é transversal na sociedade e a todas ilhas. Ajuda também ter sido o seu território beneficiado ininterruptamente da existência de uma administração pública largamente autóctone que facilitou a passagem sem grandes sobressaltos para a condição de país independente.

O nível de institucionalização, como diria o Prémio Nobel da Economia de 2024, Daron Acemoglu, favoreceu o país que não teve que passar pelas mesmas convulsões das outras ex-colónias portuguesas traduzidas em guerras civis de base étnica-política e nas dificuldades enormes em construir um Estado moderno e minimamente eficaz. Em África, Botswana e os países insulares como Maurícias, Seychelles e Cabo Verde, foram dos únicos a não se deixarem bloquear no seu desenvolvimento por conflitos étnicos e pela incapacidade de construir instituições que não fossem extractivas. Mesmo assim, Cabo Verde ainda teve que arcar com as deformações institucionais resultantes do regime de partido único que discriminava ideologicamente, desincentivava a iniciativa individual e o investimento e se revia na luta de classes. O facto de Cabo Verde, diferentemente dos países insulares referidos, se situar actualmente numa posição inferior entre os que se encontram na faixa dos países de desenvolvimento médio-baixo deve-se em grande parte ao atraso no crescimento resultante de oportunidades então perdidas.

Quando se se depara com um mundo em processo de mudança histórica, que tudo leva a crer não irá beneficiar os países menos desenvolvidos, é fundamental que se procure identificar e, de seguida, reforçar os factores que têm-se revelado vantajosos. Nesse sentido, ganha a maior importância cultivar em Cabo Verde o espírito de união e aprofundar a institucionalização para melhor servir as pessoas, para promover o investimento e a actividade empresarial e para mobilizar a sociedade para uma aposta forte e consequente no capital humano. Um combate permanente deve ser feito contra as tendências que, pelo exacerbar de questões identitárias ou apelos a novas formas de luta de classes, provocam erosão social e prejudicam a coesão nacional num momento que hoje muitos já classificam do fim de uma era.

Claramente que, se outrora o mundo não esperava por ninguém, muito menos vai acontecer agora que a ordem internacional existente desde há oitenta anos está a desmoronar-se. A satisfação em saber que o país está a crescer acima do esperado não deve, pois, levar à complacência nem a optimismos excessivos. A boa nova deve, sim, constituir um incentivo maior para se construir uma base mais alargada e mais ágil para a criação de riqueza de forma a fazer o país mais resiliente e ser um factor de renovação da confiança no futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1219 de 9 de Abril de 2025.

segunda-feira, abril 07, 2025

Por uma união mais perfeita para combater o populismo

 

O populismo em crescendo na generalidade das democracias parece que já tem residência fixada em Cabo Verde. Até há pouco tempo fazia-se referência a políticos com pendor populista ou a discursos e políticas marcados pelo populismo. Como tendência partidária suportada por segmentos significativos da população ainda não se tinha destacado. A vitória retumbante de Francisco Carvalho nas eleições para a Câmara Municipal da Praia à frente de uma lista do PAICV mudou tudo, particularmente quando o vencedor se prontificou logo em dirigir o partido e ser candidato a primeiro-ministro.

Ao terramoto que significou esse anúncio seguiu-se, semanas depois, a retirada do ainda líder e a apresentação de mais três candidaturas para a eleição do presidente do partido. Os acontecimentos na última semana antes do certame eleitoral, que acabou adiado por decisão do Tribunal Constitucional (TC) na sequência da interposição de uma providência cautelar, deixaram saber de uma forte vontade no seio de destacados militantes de impedir o controlo do partido por forças populistas. O recurso à questão da regularização das quotas na disputa acabou, entretanto, por exacerbar os ânimos, abrindo caminho para uma candidatura se vitimizar e de seguida capitalizar sobre a provável decisão do TC.

Nos tempos de hoje nada disso é estranho quando se veem forças populistas, radicais ou extremistas a se apresentarem como vítimas de situações inicialmente por elas provocadas nas suas incursões contra o sistema ou contra as chamadas elites. Seguindo o playbook já palmilhado por Donald Trump e por outros, proclamam-se vitoriosas no confronto, independentemente da decisão dos órgãos jurisdicionais, e colocam-se na posição de acusar o sistema judicial de ser instrumentalizado contra eles e de descredibilizar a democracia. Há dois dias assistiu-se a algo similar com Marine Le Pen quando foi julgada e condenada por corrupção e viu limitada os seus direitos políticos. Acusou os tribunais de terem sido parciais e deplorou a fragilização da democracia.

A constatação do fenómeno do populismo não deve ficar-se pela oposição ou pela simples denúncia. O seu aparecimento e desenvolvimento é sempre uma possibilidade nas democracias da mesma forma que não se pode evitar que a demagogia em algum momento contamine e distorça o discurso político na esfera pública ou que a corrupção, no sentido de desvio de recursos públicos para fins particulares, desapareça de forma permanente. A democracia é, por definição, imperfeita para melhor sobreviver a choques imprevistos e mostrar-se resiliente a um mundo em mudança. Só soçobra quando se deixa de ter como referência os seus princípios e valores e de cumprir as suas normas e procedimentos. Se acontece, o populismo, os extremismos da direita e da esquerda e a corrupção encontram terreno fértil para crescer.

Daí que para conter a corrida para os extremos políticos, para não se cair na tentação populista de dividir a comunidade em “nós” e os “outros” e para não tolerar a corrupção a responsabilidade está em cada actor político, nas instituições da república e nas instituições de intermediação como os médias, as universidades, as igrejas e outras da sociedade civil. Também o cidadão comum não deve escusar-se ao seu papel na fiscalização do estado da democracia enquanto eleitor e participante da vida cívica e política do país. Afinal ele só é livre para dizer o que pensa nas conversas com os amigos, na comunicação social ou nas redes sociais porque a democracia e o Estado de Direito democrático asseguram-lhe as condições para tal.

Para o exercício da responsabilidade de manter a democracia funcional e credível é fundamental que se esteja alerta a certos sinais, designadamente: que as instituições poderão estar a descredibilizar-se ou por ineficácia própria ou sob pressão externa; que está a generalizar-se o sentimento nas pessoas de falta de uma voz activa própria ou de representação na vida do país; e que há uma percepção persistente em certos segmentos da população de que estão a ficar para trás ou excluídos de alguma prosperidade produzida que é monopolizada por uma “elite”. É desse “caldo primordial” complicado que poderá vir alimento, na base do ressentimento sobre o presente e do medo em relação ao futuro, para suportar os populistas.

A luta para quebrar o crescimento do populismo não deve, pois, ser dirigida primariamente contra os seus representantes. Corre-se o risco de os agigantar e de os transformar em vítimas. Deve-se procurar identificar as causas do mal-estar existente e da desesperança, compreendê-las e dar-lhes a resposta compreensiva que precisam de uma forma realista e pragmática. As soluções dos populistas, simplistas e redutoras da realidade, como geralmente são, passam pelo aumento da conflitualidade social, por incumprir normas existentes e “quebrar coisas” e pela promessa de espoliar uns para favorecer outros. A contra-resposta terá que passar por desfazer o sentimento de exclusão, por uma postura mais austera e solidária do Estado e pela valorização da cooperação como via indispensável para se conseguir progresso para todos.

Noutras paragens o populismo ganha força com a exploração da xenofobia, de sentimentos de exclusão e anti-imigrantes, reacções contra políticas identitárias, etno-nacionalismos e tensões próprias das sociedades multiculturais. Os seus métodos e o seu foco são invariavelmente anti-sistémicos e dirigidos contra a democracia. Funcionando na base da extrapolação de emoções serve-se de narrativas para construir realidades alternativas e, por isso, torna-se difícil combatê-lo simplesmente com base na disponibilização de factos e com a chamada comunicação de proximidade.

Em Cabo Verde são vários os indícios de que nas eleições legislativas vai-se ter um embate contra o populismo. Não será a primeira vez. O ensaio numa escala menor, mas representativa já foi feita nas autárquicas na Cidade da Praia e sabe-se quem saiu vencedor. E, como em casos de confronto com populismos noutras democracias, não se deixou de notar o impacto da maior transversalidade da mensagem populista no aumento dos votos e a aparente menorização pelos eleitores da importância da competência governativa na escolha dos dirigentes.

São sinais inquietantes que não devem repetir-se. O país saíra certamente a perder se as legislativas se tornarem num momento populista de choque entre “elites" e “excluídos". A reflexão profunda que o país precisa fazer para, segundo o vice-primeiro-ministro na avaliação do PEDS II, “dobrar seu crescimento económico nas próximas quatro décadas, pois, se o ritmo actual continuar, não será possível atender às demandas do mercado e da juventude em escala e tempo” dificilmente se verificará num ambiente político dominado pelo populismo.

Compete ao governo a responsabilidade primeira em combater as causas da exclusão e as narrativas que permitem aos populistas capitalizaram sobre as situações de precariedade para dividir a sociedade e, de facto, roubar-lhe o futuro. Aos partidos políticos é de maior importância que se revejam como pilares do sistema democrático e não sucumbam ao discurso fácil, movidos pela ganância da conquista do poder. Da sociedade deverá vir o sentimento e a intuição de que não é pela divisão, pela luta de classes, pelo confronto entre uns e outros que o país sobreviveu séculos e construiu uma consciência de nação dentro de um império colonial. O futuro só pode vir, parafraseando Abraham Lincoln, de uma “união mais perfeita”. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1218 de 2 de Abril de 2025.

segunda-feira, março 31, 2025

Evitar a captura dos partidos pelos populistas

 

​O maior partido da oposição vai a eleições neste domingo, 30 de Março. Entre os candidatos ao cargo de presidente do PAICV estão dois autarcas, um empresário e um deputado. Considerando a proximidade das legislativas previstas para o primeiro ou segundo trimestre de 2026, a eleição directa do presidente irá determinar quem o partido vai apresentar como seu candidato a primeiro-ministro. Daí o caracter crítico do embate deste domingo tanto para o futuro do Paicv como para o do país.

A luta entre os concorrentes é desigual. Por um lado, porque dois deles recentemente saíram vencedores em eleições autárquicas, tendo um deles renovado o mandato no município da capital. Nota-se isso nas sondagens vindas a público e na capacidade de mobilização de activistas. Também é desigual porque enquanto os restantes três candidatos se posicionam, como seria de esperar em eleições intrapartidárias, o candidato que também é presidente da Câmara da Praia tem a postura e o discurso de quem funciona com outras regras. A forma como se move mobilizando alguns milhares de novos militantes mais parece um assalto para a captura do partido do que uma competição normal para ganhar a presidência.

Aliás, já no dia da vitória autárquica na Praia a 1 de Dezembro, a sua mensagem principal foi que iria assumir o partido e apresentar-se como candidato a primeiro-ministro nas eleições de 2026. O país, algo estupefacto, apercebeu-se logo disso, assim como o próprio partido e o seu presidente, que com os resultados inéditos das eleições supostamente deveria estar a gozar o seu momento de glória e eventualmente a projectar-se para o futuro. A desistência em se recandidatar já se pressentia nesse dia e veio a confirmar-se pouco depois. A vitória surpreendente na Praia tinha servido para lançar o partido para outros caminhos e para uma outra liderança.

A carreira aparentemente excêntrica de um político iniciada nas últimas autárquicas recebia um impulso que o catapultava para a esfera nacional quase que automaticamente. As candidaturas que vieram atrás dão a impressão de ser um esforço de uma parte do partido em conter o que parece inevitável. De facto, a caminhada para chegar ao que existe hoje começou cedo e a surpreender ao mexer, pública e ruidosamente, com o que seria normal e expectável. Para o seu protagonista importava construir uma imagem anti-elites, feroz contra a corrupção e não subordinada à liderança tradicional do partido.

Nesse sentido, serviu-lhe bem acusar de corrupção vereadores do seu partido, posicionar-se contra o cumprimento do acordo prévio da CMP com o Clube de Ténis da Praia e recusar-se a aceitar a mediação do partido no conflito com a maioria do PAICV na Câmara da Praia. Afirmava-se acima de todos os órgãos do município, forçando a interpretação da Lei para passar o orçamento da CM e nada lhe acontecia. Toda a tentativa de responsabilização política e de fiscalização das contas e do funcionamento do município que é expectável num Estado de Direito democrático foi construída como sendo perseguição e bloqueio.

À imagem de irreverência soube juntar a de vítima do Estado e do poder judicial quando, na realidade tinha, o poder e os recursos da CM para construir uma base própria de apoio junto da população que o permitia, ao mesmo tempo, autonomizar-se em relação ao seu próprio partido e pressioná-lo de fora. Com a aura de impunidade perante todas as acusações e com o apoio do Paicv assegurado sem dever nada à sua liderança foi às eleições e renovou o mandato. Como seria de esperar, a seguir devia vir o controlo do próprio partido para o qual a entrada de elementos da sua base de apoio como novos militantes iria contribuir. Aparentemente, é o que vai acontecer ao partido no próximo domingo.

Vêm-se tornando frequentes nas sociedades democráticas os casos em que partidos tradicionais são capturados por políticos que primam por projectar uma imagem de outsiders, anti-partido e anti-elites. A autenticidade da sua imagem como populistas confirma-se com a sua disponibilidade em violar as regras, em pôr em causa as instituições e a mostrarem-se irreverentes face a práticas e figuras de autoridade geralmente aceites. A impunidade de que vão beneficiando, de confronto em confronto, cimenta a aura de invencibilidade e até de predestinados ou messiânicos. O exemplo paradigmático dessa figura é Donald Trump que, como presidente dos Estados Unidos, está à frente do país mais poderoso do mundo, cujos efeitos transformadores, no mau sentido das suas políticas, já se fazem sentir em todo o mundo com consequências que vão arrastar-se provavelmente por muitos anos.

O populista aproveita-se de situações em que há alguma quebra de confiança nas instituições e uma diminuição de esperança no futuro para encontrar o seu “povo”. Prontamente oferece-se para o liderar na luta contras as “elites”, que supostamente monopolizam todos os recursos, são insensíveis às necessidades das pessoas e já não têm soluções para o país, e no processo, excita paixões, reforça frustrações e fomenta ressentimentos. O populista apresenta as suas próprias soluções que geralmente são simplistas e por isso constituem mais apelos a emoções do que respostas compreensivas a situações complexas. Trump chama-lhes common sense, mas na prática são políticas incoerentes que põem em causa a ordem política e socioeconómica sem resolver as questões de fundo e sem salvaguarde da liberdade, da dignidade e da autonomia das pessoas.

Em Cabo Verde ensaia-se criar um “povo” a partir da realidade da desigualdade social existente no país. Em vez de forçar os partidos a agir e a sociedade civil a exigir mais das reformas que devem ser feitas para que país tenha mais crescimento, mais emprego e mais oportunidade, há quem queira uma espécie de luta de classes entre uma suposta elite e os “excluídos” do sistema. Para os populistas tudo se resolveria tirando de uns para dar aos outros numa espécie de Robin dos Bosques. As armas preferidas nessa luta são o medo do futuro e o ressentimento em relação ao presente.

Como se pode imaginar, ir por esse caminho só levaria ao empobrecimento geral numa sociedade carente de ordem ao nível político-institucional e socio-económico. Uma especial responsabilidade deve ser assacada aos partidos que têm obrigação de oferecer políticas inovadoras e ousadas capazes de ir além do mais do mesmo e da gestão corrente. Partidos que mostrem vontade tanto na procura de eficiência como na prática de solidariedade e que ao construir resiliência para lidar com adversidades apostem no conhecimento e valorizem a iniciativa e a criatividade.

Evitar que na actual conjuntura partidos sejam objecto de captura por forças populistas não é tarefa fácil. A não renovação das lideranças, a falta de imaginação e a ambição desmedida têm minado os partidos impedindo-os de desempenhar o papel que lhes é reservado. Isso pode levar as pessoas a um estado de desesperança e a pensar que qualquer outra solução que não a convencional é boa. Restaurar a confiança nas instituições e o sentido de pertença apostando na solidariedade é fundamental para impedir que Cabo Verde enfrente os tempos incertos e potencialmente difíceis que vêm aí com partidos capturados por populistas. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1217 de 26 de Março de 2025.

segunda-feira, março 24, 2025

Populismo contra crescimento económico perpetua a pobreza

 

No dia a dia da política e já em preparação das eleições em 2026 nota-se cada vez mais no discurso partidário o uso de expressões como “levar a panela ao lume”, “diminuir nas taxas e aumentar na panela” e outras similares. Acontece nos confrontos no parlamento e noutras arenas entre o governo e a oposição, nas lutas para a liderança do Paicv com a tónica no anti-elitismo e certamente que vai ser o tema central das legislativas. É a tentação populista que, depois de simplificar a realidade económica e social do país, oferece como solução para a desigualdade social existente tirar de alguns, mais ricos, para oferecer aos muitos, mais pobres.

O problema com essa solução que parece evidente e justa é que se situa num quadro de soma zero em que se adiciona a uns o que se subtrai a outros. O foco assim não está, como alguém disse, em criar riqueza para que, aumentando a altura do tecto nos recursos do país, mais facilmente se elevar os que estão no piso mais baixo. A tendência, pelo contrário, é para não se concentrar no crescimento económico e na criação de empregos, mas sim na redistribuição, o que já se devia saber que não funciona. É um filme que o país já viu e já viveu noutros tempos. Como não tem recursos próprios e não cria riqueza suficiente para sobreviver tem que recorrer à ajuda externa. E da experiência conhecida, sobreviver à custa da generosidade internacional nunca realmente fez diminuir a desigualdade social e só levou à estagnação económica.

Só o facto de a fórmula populista estar a ganhar terreno no discurso político já se fazem sentir os seus efeitos perversos. Por um lado, disputam-se os dados do crescimento económico, sugerindo que poderá não estar a acontecer, e no processo não se inibe de pôr em causa as instituições que produzem e analisam os dados estatísticos do país. Contesta-se o modelo de crescimento não pela avaliação construtiva da sua eficácia e apresentando alternativas para designadamente melhorar a produtividade e a competitividade do país. Prefere-se ficar por suscitar reacções emocionais de quase paranóia, por exemplo, de que os recursos do país estão a ser desviados ou roubados por estrangeiros e que no acesso a oportunidades são privilegiados.

Por outro lado, ao pôr foco na redistribuição de rendimentos, sem ter presente os recursos existentes e a capacidade de produção de riqueza do país, numa pretensa luta para levar a panela ao lume, corre-se o risco de fomentar o ressentimento social e a inveja, diminuir a confiança interpessoal e desencadear uma corrida sem regras para chegar a recursos, os reais e os imaginários. Na prática, o que se consegue é a perda da paz social, menos disponibilidade para a cooperação cívica, profissional e política e, em sentido oposto do pretendido, o agravamento da desigualdade devido à diferente capacidade de reivindicação salarial, em particular, perante o Estado.

Curiosamente, neste particular, já há quem esteja a antecipar o impacto da suposta inflação, que virá do aumento dos salários dos professores e no futuro próximo do dos profissionais de saúde e talvez de outros funcionários do Estado, sobre a capacidade dos mais pobres em levar a panela ao lume. Não que realmente haja uma preocupação pelo bem-estar das pessoas e pelo rendimento que poderão ter e que não se quer ver diminuída pela inflação. O que se antecipa, na verdade, é mais uma causa para agitação política na luta pelo poder nas eleições próximas.

Como se assiste hoje na América, a inflação, que em 2024 foi uma das bandeiras populistas para votar Donald Trump, agora realmente disparou. Mas o seu governo não mostra nenhuma sensibilidade pelo aumento vertiginoso dos preços provocado em boa parte pela guerra comercial que por razões de afirmação do poder resolveu desencadear. Isso é típico dos populistas. Fazem das dificuldades económicas, muitas vezes de contornos complexos, causas para combate político apresentando soluções simplistas. Quando conseguem ganhar só lhes interessa é ampliar o poder mesmo à custa de tornar mais profundos os problemas que tinham encontrado e de que se serviram para mobilizar as pessoas para a vitória.

Ajudam os eleitores e a sociedade a cair no canto de sereia dos populistas os partidos políticos que, na prática, desistiram de procurar formas de promover um crescimento robusto, capaz de criar empregos, gerar prosperidade e fazê-la chegar a todos. Em vez disso, deixa-se a política degradar e não ser a via para se encontrar soluções e, em caso de falhanço, para produzir alternativas de políticas. O discurso político em vez de iluminar os problemas do país em toda a sua complexidade serve demasiadas vezes para uma espécie de infantilização da sociedade em que a correspondência com os factos deixa de existir, não há preocupação com a verdade e a realidade é substituída por narrativas que fundamentalmente apelam para as emoções e suscitam paixões.

Uma consequência de ser apanhado nesse torvelinho é a de se deixar de dar a importância devida aos resultados das políticas. Perante qualquer projecto parece importar mais o anúncio, a proclamação repetidas vezes do valor do financiamento, o espectáculo da primeira pedra e das inaugurações com os supostos beneficiados a servir de uma espécie de figurantes a repetir a sua gratidão pelo sonho realizado. Exclui-se geralmente na avaliação o impacto no rendimento actual e futuro das pessoas, na sua propensão para investir, alargar a produção e atingir mercados.

No outro dia, por exemplo, o primeiro-ministro esteve em S. Miguel e segundo o post do governo no Facebook reuniu-se “com agricultores para avaliar os impactos desta política de mobilização de água”. Ficou-se a saber que a rega gota-gota tem dado resultados concretos garantindo disponibilidade de água e que o governo comparticipa com 50% do custo dos materiais. Não se acrescentou mais informação de como a vida dos agricultores e as suas perspectivas de futuro melhoraram.

Várias vezes o mesmo acontece na entrega de meios, em anúncios de financiamentos e inaugurações de instalações. Fica-se com a impressão que falta realismo e pragmatismo no sentido que as políticas devem ser conduzidas de modo a impactar directamente as pessoas. Sem essa percepção não estranha que mais cedo ou mais tarde sejam atraídas pelo discurso fácil do populista que quer aumentar o número de vezes com que a panela vai ao lume.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1216 de 19 de Março de 2025.

segunda-feira, março 17, 2025

Precisa-se hoje da ousadia da sociedade civil que ditou a Declaração Política de 14 de Março

 

​Trinta e cinco anos atrás o mundo estava a mudar rapidamente. A sensação de uma aceleração brusca na vida política tanto no interior dos Estados como nas relações inter-Estados ao nível global era similar ao que acontece hoje. A diferença é que nos primórdios da década de noventa as mudanças traziam esperança e uma perspectiva de prosperidade generalizada.

Agora o sentimento é de que se deve esperar tempos difíceis enquanto o mundo procura equilibrar-se num sistema de poder multipolar e as nações poderosas confrontam-se para assegurar zonas de influência, com prejuízo para a solidariedade internacional e para a dinâmica de crescimento mundial. 

Em Cabo Verde a pressão nos últimos anos da década de oitenta de um mundo em mudança, em que regimes totalitários e autoritários caiam em todos os continentes com destaque para a queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989, levou à abertura política de 19 de Fevereiro de 1990. O gesto do regime era realmente uma tentativa de fuga em frente de um partido com quinze anos de poder ditatorial que queria adaptar-se aos novos tempos, mas conservando a sua hegemonia. Suportado por sondagens realizadas pouco antes, que lhe dava ampla aceitação popular, o seu plano estratégico só previa eleições pluripartidárias em 1995, criando, entretanto, no âmbito da abertura, a possibilidade de grupos de cidadãos concorrerem nas eleições em Dezembro de 1990. 

O surgimento menos de um mês depois da declaração política de 14 de Março a constituir um Movimento para a Democracia com reivindicações muito claras de mudança de regime e da instituição de uma democracia liberal alterou-lhe completamente os planos. Percebeu-se que afinal o regime de partido único não gozava de suporte alargado e que na sociedade havia uma vontade de liberdade e de autonomia para escolher governantes. O efeito da declaração do MpD não se limitou ao exterior do partido. Também provocou movimentos no seu interior, levando a novos desenvolvimentos que puseram em causa todo o plano inicial da abertura. 

Rapidamente o então presidente da república recuperou a iniciativa política e mostrou-se favorável à eleição do PR por sufrágio directo e universal e disponibilizou-se para deixar o cargo de secretário-geral do PAICV para ser candidato suprapartidário nas eleições presidenciais de 1990-91. Com o calendário previsto e as condições para as eleições completamente alterados, o PAICV teve que se ajustar rapidamente, procurando renovar a sua direcção e a sua imagem pública. Nas ruas e em todas as ilhas, porém, a movimentação popular engrossava e quase imediatamente encontrou o seu líder no conceituado jurista e figura pública Carlos Wahnon Veiga que se tinha colocado à frente do MpD como seu coordenador provisório. 

Com a declaração política de 14 de Março, a abertura política ganhou uma outra natureza e dinâmica e deixava de ser uma tentativa de fuga em frente para manter o PAICV no poder. Pela primeira vez a acção política no arquipélago passou a ser feita no sentido da promoção dos ideais de liberdade, pluralismo e justiça e com vista a uma cidadania plena e a uma prosperidade compartilhada e não com o objectivo de manter um único partido indefinidamente no poder. Diferentemente do que foi a actividade política em anos passados, a mobilização das populações desenrolou-se sem coacção ou intimidação das pessoas. 

Ciente do espaço de liberdade já conquistado pela rapidez dos acontecimentos nesse extraordinário ano de 1990, os cidadãos puderam reunir e manifestar e, à sua escolha, assistir aos eventos políticos promovidos por grupos políticos e proto-partidos emergentes. A independência ou soberania, que na sua essência significa tanto autodeterminação e autonomia em relação a governos estrangeiros como fundamentalmente a possibilidade de democraticamente os membros da comunidade política criarem as suas próprias leis e escolher os seus governantes, finalmente acontecia. Quando nas eleições de 13 de Janeiro mais de dois terços votaram, o sentido maioritário do voto não era o de simples preferência de um partido sobre outro numa nova legislatura, mas de rejeição profunda de um regime político ditatorial. 

O mandato recebido foi histórico no seu alcance e abrangência. Tratava-se primeiro de construir uma democracia liberal e constitucional e consolidar as suas instituições. Para isso caminhou-se seguramente para a adopção da Constituição de 1992 e a criação do poder local democrático, de forças armadas subordinadas ao poder democraticamente legitimado e de garantias para a existência de imprensa livre e de poder judicial independente. O outro mandato tinha a ver com a necessidade de ultrapassar a estagnação económica dos finais dos anos oitenta, à semelhança do que acontecia com outras economias estatizadas. Reformas profundas nos domínios da política monetária, financeira, fiscal deviam ser acompanhadas de liberalização da economia e de privatizações para se criar uma economia de mercado e aumentar o potencial de crescimento. 

Trinta e cinco anos depois de se ter iniciado a caminhada para a adopção dos princípios civilizacionais de respeito pela dignidade humana e se ter feito a aposta na modernidade com vista à construção de prosperidade na liberdade e na paz, sinais complicados sugerem alguma tendência para se reverter o processo. É verdade que tudo indica que o país não está a crescer suficientemente, que a produtividade é baixa e que não é suficientemente competitivo. Mas o mais preocupante é o que as sondagens indiciam da perda tendencial de confiança nas instituições, nos actores políticos e no futuro do país. Algo em que são os próprios os principais responsáveis na luta vã para tirar dividendos pela via de culpar os outros e de se entregarem a tacticismos infantis que segundo António Guerreiro do jornal Público faz “da vida política uma competição de recreio ou um cenário de desenho animado pueril e regressivo”. 

O que parece faltar é a ousadia para se interrogar sobre os constrangimentos que impedem que o país cresça mais, crie mais empregos e melhore os salários existentes. Diferentemente do que aconteceu há trinta e cinco anos, quando um regime monolítico abriu uma fresta e rapidamente da sociedade civil surgiu uma declaração política e pessoas dispostas a explorar as novas possibilidades, Cabo Verde parece um país de autocensurados. Já há muito que regularmente se trazia à baila a questão da autocensura na comunicação social. Recentemente no programa de Carlos Santos na RCV fez-se referência a economistas que se autocensuram e não aceitam comentar o estado da economia. É de se perguntar se é um caso isolado ou se abrange outras classes profissionais, o que seria um sinal do fraco retorno do enorme investimento feito ao longo dos anos no capital humano do país. 

Sem essa vitalidade crítica na sociedade civil e no interior dos partidos para visionar, questionar e para propor fica difícil o país encontrar um caminho para sair dos bloqueios actuais. Com o mundo a mudar rapidamente no sentido de maiores incertezas, a tentação geral, infelizmente, não tem sido o de procurar soluções criativas que promovam a cooperação e a confiança entre pessoas. Vai-se pela aposta no discurso anti-elites, alimenta-se o ressentimento e a inveja e apresenta-se, como solução para os problemas das pessoas, a redistribuição de rendimentos. Esquece-se que fórmulas similares já foram aplicadas em Cabo Verde nos primeiros anos de independência. Hostilidade a elites, apelos a luta de classes, e acusações de exploração só fizeram o país perder oportunidades e chegar a 1990 com uma economia estagnada e rendimento per capita de 817,4 dólares. 

A grande questão não é porque há pobreza no mundo, mas sim como se cria riqueza que pode tirar as populações da miséria e permitir-lhes uma vida livre e próspera com autonomia. Para isso é preciso ousar como se fez em 1990 em todos os cantos do país para que Cabo Verde fosse hoje um país da liberdade e da democracia.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1215 de 12 de Março de 2025.

segunda-feira, março 10, 2025

Fazer a melhor escolha para a nova era que se avizinha

 

Há três anos atrás, a 24 de Fevereiro, a invasão da Ucrânia pela Rússia provocou sobressaltos em todo o mundo. Aparentemente estar-se-ia a voltar aos tempos de resolução violenta dos conflitos, do desrespeito pela integridade territorial dos Estados e de anexação de países inteiros para saciar apetites imperialistas. A resistência heróica do povo ucraniano que se seguiu à invasão trouxe alento que não seria assim.

O apoio militar imediato que a Ucrânia recebeu dos Estados Unidos e da Europa foi crucial para conter a incursão russa e para reforçar a importância de se garantir o respeito pela integridade dos Estados soberanos, independentemente da sua dimensão, localização ou peso económico. No mesmo sentido foi a posição tomada na Assembleia Geral das Nações Unidas, com 145 votos a favor num total de 190, de apoiar a Ucrânia e exigir a retirada das tropas russas. O sentimento geral era que, apesar dos sinais a apontarem para o aparecimento de um mundo multipolar, a ordem liberal construída depois da segunda guerra mundial manter-se-ia.

A realidade actual veio provar que isso não estava para acontecer. Se dúvida houvesse foi dissipada no encontro entre Trump e Zelensky na Casa Branca em que ao presidente da Ucrânia se quis impor um acordo de fim da guerra, sem a sua participação nas negociações e sem garantia de segurança. Ainda se lhe exigia que mostrasse gratidão disponibilizando recursos ricos do seu país a empresas americanas. Antes, uma resolução da Assembleia Geral da ONU de condenação da invasão russa tinha passado com o voto contra dos Estados Unidos e só com 93 dos votos a favor, num total de 174.

De facto, o tratamento indigno dado ao presidente Zelensky, incluindo o de lhe chamar ditador, e o voto dos EUA contra a condenação da agressão russa indiciam que os princípios e valores que nortearam o mundo nos últimos 80 anos deixaram de ser seguidos. Aparentemente já não se pode confiar que países grandes ou pequenos sejam igualmente merecedores de respeito, nem que, sem seu consentimento, tenham mudanças territoriais ou que os países possam livremente escolher os seus governantes e relacionar-se ou fazer comércio em igual termos que os outros. Se não houver qualquer inversão desse comportamento, provavelmente será o fim da uma era nas relações internacionais iniciada por Roosevelt e Churchill, em 1941-2, na Carta Atlântica e que abriu caminho para a criação da ONU e de outras organizações multilaterais como o FMI, o Banco Mundial, a OMS e a Organização Mundial do Comércio.

Infelizmente não se vê muito espaço para optimismo nesse sentido. Há um mês atrás, a 4 de Fevereiro, o presidente Donald Trump emitiu uma ordem executiva decretando a retirada dos Estados Unidos de organizações como a UNESCO e a UNHRC. Também deu o prazo de 180 dias para a revisão da presença e financiamento do país em todas as organizações intergovernamentais internacionais. Certos observadores não excluem a possibilidade de saída do FMI e do Banco Mundial. Aliás, o Projecto 2025 associado à candidatura de Trump explicitamente reduz o FMI e o BM à condição de intermediários caros que interceptam o financiamento americano antes de chegar aos projectos no estrangeiro.

O esventramento da USAID nas últimas semanas é sinal claro que essas políticas de diminuição da sua participação na ajuda internacional e nas organizações multilaterais são para continuar. Problemático também é que é provável que essa atitude não fique só pela América e que seja imitada na Europa. No Reino Unido uma boa parte da ajuda externa vai ser reconduzida para a defesa nacional e tudo leva a crer que outros países europeus vão se sentir pressionados a fazer algo similar, considerando a necessidade de apoiar a Ucrânia e de responder à ameaça russa, particularmente quando não há garantia absoluta do apoio americano em caso de guerra.

O enfraquecimento do princípio da solidariedade mútua entre os aliados expresso no artigo 5º da NATO é mais um elemento que anuncia que se está no fim de uma era e no início de uma outra mais caótica, mais propensa a conflitos e fundamentalmente mais desigual na relação entre os Estados. No mundo multipolar que se desenha aparentemente dominado pelos Estados Unidos, pela China e pela Rússia já livre da guerra e das sanções internacionais por obra e graça de Trump, não vão faltar tensões complicadas. São esferas de influência a consolidar, podem ser novas potências nucleares a surgir para evitar o destino da Ucrânia e também novas cadeias de valor e de abastecimento a serem forjadas. Paralelamente a isto tudo há que lidar com as grandes manchas de pobreza e subdesenvolvimento que não deixaram de pressionar o resto do mundo, ora limitado na sua intervenção por deficiências das organizações multilaterais e ausência de uma solidariedade universal consolidada e focada nos mais carentes.

Há quem diga que a União Europeia mais o Reino Unido, se souberem ultrapassar as rivalidades no seu esforço para garantir a segurança do continente e o estatuto de superpotência económica, poderão fazer a diferença na nova era e manter a esperança que o mundo não é apenas para os mais fortes, os mais ricos e os mais sem escrúpulos. Não será uma tarefa fácil porque é perceptível que uma vaga iliberal, potencialmente maioritária, como já provou ser nos EUA e cresce a olhos vistos noutras democracias, poderá torpedear a UE ao aliciar alguns países a criar individualmente relações especiais com os centros multipolares. E para a ascensão dessa vaga maioritária mais migrações e mais pedidos de ajuda vindos do Sul serão um incentivo perfeito, criando um círculo vicioso que só pode contribuir para mais caos internacional.

Naturalmente que nessas circunstancias os países mais pequenos e mais expostos a choques externos sejam eles climáticos, económicos, sanitários ou resultantes de guerras são os mais afectados. Na lei da selva que tende a prevalecer e na nova era de relações “transaccionais” é cada vez mais forte a pressão para ceder a exigências dos mais fortes. Como a Ucrânia constatou, essa pressão não é acompanhada de qualquer acréscimo de confiança ou de garantia de segurança.

Mais uma razão para que ao nível de cada país haja um maior esforço de conhecimento da nova realidade internacional marcada por tensões entre as grandes potências e pela diminuição catastrófica da ajuda externa. Infelizmente, em vários casos, ao nível local, forças similares aos que alimentam o processo de desagregação da ordem liberal no mundo trabalham na perspectiva de lucrarem politicamente com o caos institucional, relacional e pessoal que é gerado sempre que não se consegue conciliar recursos, expectativas e a realidade do mundo envolvente.

Em Cabo Verde, também acontece e são nesses momentos pré-eleitorais e eleitorais que são mais perceptíveis assim como também as opções para as evitar. Nada está predestinado. Na encruzilhada perigosa em que o mundo se encontra neste momento é fundamental um olhar especialmente atento para todos os lados para se fazer a melhor escolha. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1214 de 5 de Março de 2025.

segunda-feira, março 03, 2025

Não há ganhadores na corrida ao fundo do poço

 Não tem diminuído a tentação dos actores políticos em se engajarem numa competição predatória entre si a qual pode ser retratada como uma “corrida ao fundo do poço” da confiança nas instituições. Pelo contrário, prossegue-se na corrida apesar dos seus óbvios efeitos erosivos e ignorando os seus próprios apelos para uma maior contenção. Na fúria da corrida, nem se presta atenção ao que se passa no resto do mundo onde já são vários os exemplos de reacção de maiorias eleitorais à procura de soluções autocráticas para inflectir atitudes e políticas em sectores sensíveis. Muito menos se nota que algumas vezes não se trata de simples correcções, mas sim de autênticos terramotos, como se tem assistido nos Estados Unidos da América.

Indiferente a isso, em Cabo Verde continua-se na política a correr para o fundo do poço acreditando uns e outros que poderão beneficiar da intranquilidade social ou do descrédito das instituições em detrimento dos outros. Recentemente apanhado nesse jogo foi o presidente da república, de acordo com seu post de sábado na sua página pessoal no Facebook. No seu texto refere-se a activistas que usam algumas das suas intervenções para o pôr “a apoiar este ou aquele candidato a Presidente do PAICV ou para, indecentemente, atacar-me”. Também reitera que não tem qualquer actividade partidária e que não faz sentido “colar-me a este ou aquele candidato como pretexto para soezes ataques à minha pessoa”.

O facto de nunca antes terem sido dirigidas a um PR acusações de tal gravidade ao ponto de ele se sentir obrigado a vir publicamente negar intromissão na escolha do candidato a presidente de um partido político denota o quanto mudou na percepção das pessoas a relação entre os órgãos de soberana, o papel de cada um dos órgãos no sistema político e as suas interacções com o sistema de partidos. Originariamente, no sistema constitucional cabo-verdiano, o presidente da república não sendo, segundo os constitucionalistas, co-governante a par do Governo, nem co-legislador a par da Assembleia Nacional, fica numa posição privilegiada para exercer o poder moderador e a função de garante do regular funcionamento das instituições. Também ao não fazer parte do executivo, nem ser chefe da oposição, e muito menos expressão de interesses partidários, sindicais ou de classe, e ainda de não responder perante ninguém, isso concede-lhe uma autoridade e uma representatividade impar que o põe acima de todas as suspeitas de interferências partidárias.

Acusações como as que o PR referiu no seu texto no Facebook nunca deveriam ter sido formuladas. Não aconteceu antes nos trinta anos de democracia. Daí que a questão que se coloca é saber que alterações houve no relacionalmente e no funcionamento do sistema de governo que as poderão ter propiciado.

Em Portugal, com um sistema constitucional bastante próximo do de Cabo Verde, a aproximação das eleições presidenciais tem desencadeado o debate sobre o papel do presidente da república no sistema político. O debate encontra a sua razão de ser no especial desafio que tem sido o exercício do cargo pelo actual presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Na percepção de muitos, o seu estilo distingue-se do dos anteriores presidentes e nem sempre pela positiva. Para o constitucionalista Vital Moreira o seu desempenho “arrisca a ficar na nossa história política como um modelo do que não deve ser o mandato presidencial”.

Na perspectiva deste constitucionalista, o presidente entre outras coisas deve exercer o cargo com discrição e elevação, recusando a banalização e vulgarização da magistratura presidencial; nunca esquecer que não lhe compete a função de governar e não se pronunciar publicamente sobre as opções governamentais, nem sobre as posições da oposição; não instrumentalizar a convocação do Conselho de Estado para se imiscuir em matérias que não são da sua competência e defender sempre os valores constitucionais da dignidade humana, da democracia liberal, do Estado de direito, do Estado social, da descentralização territorial. No mesmo sentido vai o ex-presidente da Assembleia da República, Santos Silva, que num artigo no jornal Expresso sobre a função presidencial aconselha que o Presidente não tem de se substituir à oposição, nem avaliá-la, nem intrometer-se nos debates parlamentares, nem interferir directa ou indirectamente na vida dos partidos, nem funcionar como comentador omnipresente dos actos dos outros.

Curiosamente o estilo no exercício do mandato que em maior ou menor grau os dois últimos presidentes de Cabo Verde resolveram adoptar aproxima-se do seguido pelo presidente português. Sendo, porém, os governos em Cabo Verde de maioria absoluta, são maiores as probabilidades de gerar tensões entre os órgãos de soberania. Essas tensões acabam fundamentalmente por depender da disponibilidade ou não do primeiro-ministro em aceitar interferências na esfera da governação do país. De qualquer forma, a possibilidade de abuso de poder surge sempre que os outros órgãos de soberania não assumem na plenitude as suas competências.

Abre-se também a porta para interferências complicadas quando, como aconteceu nas cerimónias de cumprimentos de Ano Novo, se ouve representantes do poder judicial a pedir ao PR para exercer a sua influência nos partidos sobre propostas de lei em debate no parlamento. Ou então, quando são recebidos em audiência sindicatos em processo negocial com o governo e há petições para influenciar as negociações ou mesmo para vetar diplomas legislativos. O risco é maior quando o PR se torna activista de causas e abre debates sobre políticas públicas para os quais não tem meios para implementar e mobiliza forças que depois confrontam quem governa. Com todas essas oportunidades de intervenção, fica difícil o exercício do poder moderador, por definição um poder neutro, que segundo Vital Moreira deve estar acima da dialéctica Governo-Oposição.

Uma das consequências de não ser percebido como neutro é tornar-se alvo de ataques pessoais e de acusações de interferência não só em questões da esfera governativa como também partidárias. É o que, segundo o post do PR no Facebook, está a acontecer actualmente por causa das eleições internas para presidente do PAICV. Ninguém precisa de mais uma acha na fogueira daqueles que aproveitando das falhas ou insuficiências na actuação da presidência da república, no governo, no parlamento e na justiça procuram descredibilizar as instituições democráticas. Há uma responsabilidade a assumir por todos os titulares de cargos públicos para que isso não aconteça. Não se deve cair na ilusão de que haverá um ganhador na “corrida ao fundo do poço”. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1213 de 26 de Fevereiro de 2025.

segunda-feira, fevereiro 24, 2025

Com a ajuda externa a retrair-se, impõe-se uma nova atitude

 

Uma sondagem do jornal Financial Times publicada no início da semana revelou que 60% dos americanos concordaram com a medida de congelamento da ajuda internacional americana sob a direcção da USAID tomada por Donald Trump e implementada por Elon Musk. Só 12% dos sondados discordaram da ideia que montantes significativos dos fundos da ajuda são desperdiçados em corrupção e nos custos administrativos, em detrimento dos realmente necessitados. A constatação de que a maioria da população considera que a ajuda tem sido mal utilizada já serve de travão a eventuais acções do partido democrata em procurar contrariar o bloqueio da ajuda externa. E no mundo já se percebe que o impacto vai ser enorme, considerando que a contribuição americana de 40 bilhões de dólares anuais através da USAID corresponde a 40% da ajuda internacional.

De facto, é de esperar o efeito desastroso que a diminuição drástica dos fluxos da ajuda terá tanto directamente sobre muitos necessitados de alimento e medicamentos como indirectamente sobre as organizações de apoio que sem o suporte americano dificilmente vão poder prosseguir com a sua actividade humanitária. Uma outra consequência da medida é que poderá levar à imitação em outros países, designadamente na Europa, se os avanços da direita radical se traduzirem numa maioria que questiona a efectividade dos programas actuais de redução da pobreza, de ajuda humanitária e de apoio ao desenvolvimento e à luta contra as alterações climáticas. Sem doações substantivas dos dois maiores contribuidores, EUA e UE, muitos países e populações poderão ficar em situação difícil, particularmente em casos de catástrofes naturais, guerras e perseguições políticas, étnicas ou religiosas.

Não é fácil para qualquer país encontrar a fórmula certa para o crescimento económico e para o desenvolvimento. O baixo número de casos bem-sucedidos deveria ter servido de aviso. Aliás, a história da humanidade, que aponta para a revolução industrial, há trezentos atrás, como o momento quando se tornou possível o aumento da produtividade que levou ao crescimento e à criação sustentada de riqueza, deixa entender precisamente isso. Não obstante, insistiu-se na ideia que a ajuda externa podia substituir lideranças competentes, políticas próprias baseadas nas especificidades dos países e a vontade engajada das populações para se atingir o desenvolvimento. Sem desprimor pelos benefícios reais conseguidos com a generosidade internacional, permitiu-se que muito dos recursos disponibilizados tenham sido mal aproveitados, alimentando burocracias internacionais e nacionais e levando agora à percepção em várias franjas da população dos países doadores que afinal a ajuda não chega a quem mais precisa.

Para vários países em desenvolvimento a ajuda externa passou a representar algo similar ao chamado “resource curse”, ou maldição dos recursos, em que países com petróleo, diamante e outros minérios ricos são mal governados, têm instituições frágeis, apresentam grandes desigualdades sociais e não conseguem libertar-se da extrema pobreza. Segundo um paper do Banco Mundial “Aid and Resource Curse”, a ajuda externa também pode ser um factor para os governos não fazerem reformas, para serem despesistas, para optarem por projectos financiáveis e não pelos prioritários e para propiciarem rendas a clientelas políticas. Um outro efeito negativo referido no texto é o facto da administração dos projectos com os seus altos salários “subtrair” quadros qualificados ao Estado, enfraquecendo as instituições.

Quando o país em desenvolvimento se deixa apanhar por alguma forma do “aid curse”, é interessante notar como desenvolve narrativas, adopta atitudes e faz opções que racionalizam a sua permanência por largas décadas como recipiente da ajuda internacional. Alimenta, por exemplo, a narrativa que os recursos do país são objecto de cobiça dos estrangeiros e com isso justifica a desconfiança no investimento estrangeiro e no turismo. Nutre o ressentimento em direcção aos maiores doadores, ao mesmo tempo que incentiva uma cultura de vitimização histórica. Opta por políticas de distribuição de rendimento que não põem suficiente ênfase na necessidade de crescimento e criação de riqueza, mas privilegiam a formação de clientelas para a conquista e manutenção do poder.

O resultado é que não se consegue potenciar os fluxos de capital e os fluxos turísticos que teimam em chegar ao país, nem mobilizar a iniciativa, a criatividade e o espírito empresarial a quem se incutiu a ideia que há ganho em ser vítima e que a vantagem maior é ficar bem colocado na “cadeia alimentar” com o Estado no topo para ter acessos, favores e oportunidade de rendimento. Um outro resultado é que o país, apanhado num círculo vicioso, não consegue desenvolver uma ideia de desenvolvimento que podia contrapor às agendas das organizações de ajuda internacional, ficando sob uma espécie de tutela. Submetendo-se, o país aprofunda ainda mais a atitude do Estado rentista em que a política partidária deriva cada vez mais para soluções populistas que se alimentam do ressentimento social e incidem sobre a redistribuição de rendimentos, sem correspondência com a realidade presente e sem muita preocupação com o futuro.

Em Cabo Verde, nos últimos dias é interessante notar como os problemas do país são geralmente percebidos. A propósito do acordo de pesca com a União Europeia, a atenção geral fixou-se numa afirmação que Cabo Verde estaria a vender o atum por 13 escudos o quilo. É uma das tais afirmações que ressoam com narrativas bem estabelecidas segundo as quais o país é rico em peixe e, se não parece ser, é porque está sendo roubado. Devia ser evidente que Cabo Verde não vende peixe. Vende quem investe em navios e equipamentos e contrata pescadores para captura e depois leva o pescado ao mercado. No quadro do acordo com a UE cobra-se uma licença para explorar um recurso que na sua trajetória migratória passa pela sua zona económica exclusiva. Não há como confundir preço de venda de um produto pelo custo de uma licença de exploração de um recurso. Só se insiste nisso para reforçar a narrativa que alimenta fantasias e vitimiza a população, mas não leva a acção consequente.

De facto, se há um recurso como o peixe, porque não explorá-lo. Se se quer evitar que seja delapidado ilegalmente por outros, por que não fiscalizar a ZEE do país. Em quase cinquenta anos de independência, não se criou capacidade de captura industrial de peixe, nem se explorou acordos de pesca com países vizinhos: eles sim, são ricos em peixe. Também não se optou pela aposta numa guarda costeira para fiscalização das águas do país. Ou seja, não se agiu numa perspectiva de desenvolvimento do sector das pescas e a cooperação com vários países no sector ao longo de todos esses anos serviu outros propósitos que não os que deviam ser óbvios. Mesmo quando a UE facultou a possibilidade de exportação de peixe enlatado com isenção de tarifas, não foi compreendido que o país tinha um tempo para adquirir capacidade de captura para beneficiar das isenções. As derrogações à regra das normas de origem têm um prazo, findo o qual há consequências para as conserveiras, para os trabalhadores e para as exportações do país. Tudo parece não importar enquanto numa mistura de deleite e indignação se traz à colação a questão da extinção dos tubarões fundamentalmente para dar mais vitalidade à narrativa que o país tem recursos e estão a ser roubados.

Há, porém, que perceber que o mundo está a mudar e rapidamente. Os Estados Unidos congelaram a ajuda internacional e se não a retomarem, nem a UE poderá compensar o buraco. Se a tendência para a revisão da política de ajuda continuar, menos recursos serão disponibilizados para os países em desenvolvimento. Se os países que se deixaram imobilizar, apanhados pelo “aid curse”, não saírem do torpor, as consequências poderão ser terríveis. Em Cabo Verde, com o mundo a transformar-se radicalmente não se pode ficar por mais tempo a deixar-se embalar por narrativas fantasiosas que impedem o desenvolvimento, vitimizam as populações e desresponsabilizam as instituições. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1212 de 19 de Fevereiro de 2025.